sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Putrefação

A Morte o encarava. Os olhos – negros, diferentes de quaisquer que houvesse visto – analisavam cada movimento, nada lhe escapava. Os cabelos possuíam a cor do mais puro antracito e caíam em tranças sobre os ombros. A face infantil era ovalada. Sua aparência frágil era acentuada pela pele cor-de-neve e grandes bochechas róseas. Os lábios vermelhos – demasiado grandes, o que lhe dava ar de ironia – entreabriram-se sobre os dentes brancos.
-Ah, chegaste, enfim. - disse a indesejada – Já não era sem tempo!
-Bem, bem. Ao que parece, não se pode enganá-la para sempre – disse o homem alto e forte. Seu sotaque irlandês impregnava o local. As ondas douradas cascateavam sobre suas verdes orbes.
-Pergunto-me como conseguiste por tanto. - ela levou ao queixo o dedo indicador, o negrume dos o olhos intensificando-se, se era possível – Já vi alguns fazê-lo. Mas, devo dizer, foste o recordista. Qual foi teu método?
-Ah, você sabe. Uma galinha na encruzilhada, velas de sete dias, essas coisas. - comentou, zombeteiro, o rapaz.
-Entendo que não queiras revelar. A menina alteou o sobrolho – Descobri-lo-ei, porém.
Levou as mãos à cabeça do rapaz, os dedos se embrenharam na floresta loura que eram suas madeixas. As orbes agora mudavam de cor: primeiro, o afetivo castanho que parecia dizer “Confia em mim, caro mortal. Sei o que faço. Não te vou machucar.”. As cores passavam lentamente: vermelho, o sangue que banhava a terra diariamente; alaranjado, o sol, o primordial fogo; amarelo, a felinidade de cada pensante; verde, a preciosidade que vestia a terra antes da total depravação intrínseca ao ser humano. Alcançou, por fim, a sábia cor: o azul glacial via tudo, sabia tudo, desde o passado mais remoto.
Os minutos se passavam como horas, gerações, séculos. O homem não se movia: era por medo ou descontrole, não se sabia. Por fim, a face infantil relaxou. Os cantos dos lábios elevaram-se, em riso de escárnio.
-Então, sangue de anjo?
-correto – a voz tremia, assim como seu portador. Sentia a ameaça, flechas flamejantes sendo lançadas daqueles olhos gélidos. Acertavam em cheio, congelavam-lhe o peito, enflamesciam a mente.
-Ah, o clássico. - disse a pequenez, degustando o sentimento de pavor do estrangeiro, e sua própria nostalgia – Mas acredito que tenhas sucedido em teus esconderijos. Ouvi dizer que a fétida terra fofa dos cemitérios protege qualquer vivalma. - ele assentiu em silêncio – e, de qualquer modo, te encontraram. Como tu os feria? Ouro puro, se não estou enganada, é de quê são feitas as adagas celestiais.
- Ouro puro – confirmou o rapaz -Acertava os corações, seus pontos fracos. Ninguém tem mais amor que os anjos – grunhiu em dor – exceto por mim, fraco humano que já teve alguém. Mas a vida aconteceu, e tu visitaste. O amor se foi. Quanto a mim, permaneci. Vivo por sua doce memória. E tomo-o de seus guardiães. Os que tanto tem dentro de si.
-é claro, apenas até o momento do sacrifício. Os anjos são os que mais odeiam. Acredite. - descartou o assunto com um movimento de mão. - de qualquer forma, 1200 anos são o suficiente sobre esse planeta odiável, certo?
-Mais do que isso – disse, pouco a pouco relaxando – Leve-me. Quero, mais uma vez, sentir o peso da terra esmagando meu peito, ferindo minha dignidade.
-Pois bem – disse a garotinha. As íris adquiriram um tom metálico, impessoal, enregelante. - congratulações por tua estadinha nessa imensidade imunda, mortal. Foste bom, ou quase. Abandonas a vida; tua memória, não. Estarás sempre em mim. Adeus.
Com sua maneira doce, a pequenina plantou um beijo em seus lábios, sugando a alma do corpo. O vaso perdeu sua flor, não tinha mais utilidade.
A carne foi exposta ao tempo, desapareceu. Suas palavras foram levadas. Lembranças, ninguém as guardava. Aos poucos, foi esquecido. Ou quase. A Morte nunca esquecia de seu eterno serviço.
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“Nesse mundo, nada é certo alem da morte e dos impostos Benjamin Franklin










sem comentários adicionais. adeus.

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